segunda-feira, 7 de março de 2016

"O Movimento Impróprio do Mundo" de Sara F. Costa



Sara F. Costa ganhou pela terceira vez o Prémio Literário João da Silva Correia mas há muito mais nela do que poesia. A jovem de 28 anos, licenciada em Línguas e Culturas Orientais, é intérprete e consultora de investimento chinês em Portugal. Vive e trabalha em Lisboa, onde também se dedica ao estudo das Relações Internacionais, área onde se encontra a tirar doutoramento e onde analisa o diálogo intercultural, questões identitárias, análise histórica, diplomática e política externa. Ao labor, fala da sua escrita, dos interesses académicos e das saudades de S. João da Madeira

LABOR: Como descreveria “O Movimento Impróprio do Mundo” em relação às duas obras anteriormente galardoadas: “O Sono Extenso” e “Uma Devastação Inteligente”?

Sara F. Costa: Cada um dos meus livros é o reflexo de um percurso. Por um lado, o percurso existencial. Por outro, há uma exploração da plasticidade da palavra, um permanente exercício de alteridade, uma evocação dos outros que me habitam. Como diria Rimbaud, “je suis un autre”. É nesta encarnação permanente do alheio que procuro traçar um percurso que se tem vindo a desenvolver em termos de maturação pessoal e literária. Recordo-me que, tanto no meu primeiro livro “A melancolia das mãos” que editei com 15 anos, como no segundo “Uma devastação inteligente” editado aos 19, era uma adolescente mais ou menos assustada com isto tudo que é viver e deixar de viver, são livros com tonalidades mais melancólicas e ansiedades pulsantes. Não é que não exista melancolia em “O Sono Extenso” ou “O Movimento Impróprio do Mundo” mas admito que passei a incorporar uma dimensão mais social, ainda que mantendo sempre a dimensão psicológica e sobretudo emocional. É difícil a autora analisar a sua própria obra, mas reconheço o meu fascínio pela vertente plástica e visual da poesia, a criação de imagens sensoriais, a captação do instante de inspiração simbolista e surrealista, o recurso à sinestesia e abstração em detrimento da narrativa ou o esboçar de narrativas não figurativas.


L:Que comentário lhe merece este triplo reconhecimento pelo Prémio Literário João da Silva Correia?
SFC: Eu escrevo de forma espontânea e sem um deadline ou um compromisso de publicação. O máximo que faço é enviar trabalhos para Prémios Literários. Este triplo reconhecimento vem confirmar algo de que sempre estive certa, a aposta que a Câmara Municipal de S. João da Madeira faz no apoio às artes e à cultura. Tenho que agradecer aos júris do prémio, todos personalidades de grande idoneidade intelectual e que muito me honram com a sua decisão. É também uma honra ter o meu nome associado desta forma ao grande João da Silva Correia, cuja obra-prima “Unhas Negras” faz sem dúvida parte dos meus livros favoritos. Espero que a escrita deste autor continue a ter divulgação na contemporaneidade e se eu fizer de alguma forma parte dessa divulgação, sinto que é algo de muito nobre.


L: Além destas três obras, que outra produção sua destacaria? O que a inspira, o que a aflige, sobre o quê gosta de escrever?
SFC: Divido-me entre a escrita criativa e a escrita académica ou científica. O que eu envio para ser analisado, por exemplo, em prémios literários é aquilo que para mim atinge um certo valor artístico. Em termos de produção artística, não destacaria mais nada para além daquilo que tenho publicado. Tenho escrito vários artigos científicos relacionados com a área de investigação na qual me encontro a tirar doutoramento, que é a área das Relações Internacionais, onde gosto de escrever sobre o diálogo intercultural, questões identitárias, análise histórica, diplomática, análise de política externa. A minha especialização geográfica é a China. O comportamento humano inspira-me bastante. Tanto na sua dimensão micro como macro, ou seja, tanto a nível psicológico como a nível social. Digamos que se eu fosse fotógrafa ou pintora, tenderia a fazer retratos. Interessa-me a ética da mesma forma que me interessa a cidadania e consequentemente a política. Participo ativamente na sociedade civil e muitas das minhas inquietações advêm de análises e reflexões de cariz social, os modelos económicos e ecológicos da nossa contemporaneidade, a violência e a conflitualidade, a reflexão sobre os modelos vigentes e os modelos que seriam desejáveis, o que os distancia e o que pode ser feito para lá chegar.


L: S. João da Madeira, cidade essencialmente industrial, tentou-se afirmar na poesia com a organização da campanha Poesia à Mesa. Tem acompanhado o evento?
SFC: Tenho acompanhado o evento na medida do possível. Quando era adolescente era uma semana de grande entusiasmo. Quando fui estudar para Braga e depois trabalhei em diversos pontos do país, deixei de ter tanta facilidade em participar no evento, com muita pena minha. O facto de S. João da Madeira ser uma cidade industrial só pode fomentar a criatividade, como fomentou ao próprio João da Silva Correia. Como sou uma escritora que se interessa muito pelas dimensões humanas e sociais, acho que é perfeitamente normal que muitos artistas se tenham inspirado na industrialização para a sua arte.


L: Sabemos que se licenciou em Línguas e Culturas Orientais e que passou algum tempo na China. Fale-nos dessa experiência, do que faz atualmente e se esse conhecimento se reflete de alguma forma na sua produção artística.
SFC: Parte do meu mestrado foi passado na cidade de Tianjin na China, onde aprofundei conhecimentos de mandarim. Já lecionei mandarim e português como língua estrangeira. Atualmente sou consultora de investimento chinês em Portugal. Também sou intérprete. Naturalmente que esta vontade de perspetivar o mundo em diferentes posicionamentos se relaciona com o meu fascínio pela Ásia da mesma forma que se relaciona com o meu fascínio pela arte, penso que tudo faz parte de uma experiência integrada.


L: Deve saber também que nas escolas primárias de S. João da Madeira ensina-se atualmente o Mandarim. Como avalia esta opção?
SFC: Sei sim. Acho que é algo louvável, de grande visão. O multilinguismo é de extrema importância e o mandarim é a língua mais falada no mundo e a República Popular da China encontra-se, nas várias dimensões do poder, a desafiar a ordem do sistema internacional pelo que há imensos motivos para se estudar esta língua neste momento.


L: Vem a S. João da Madeira com frequência?
SFC: Venho com uma periocidade mais ou menos mensal. Visito a minha família em Cucujães e os meus amigos e outros familiares espalhados por S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Santa Maria da Feira. Tenho sempre saudades de S. João da Madeira porque me lembra os tempos da adolescência, das longas horas passadas em cafés e na biblioteca a ler e a escrever e nos bares a divertir-me com os meus amigos.



Vencedora de três prémios


A escritora de Cucujães Sara F. Costa voltou a vencer o Prémio Literário João da Silva Correia. É a terceira vez que é distinguida, desta vez com a obra “O Movimento Impróprio do Mundo”.
O Prémio Literário João da Silva Correia, cuja edição de 2015 foi dedicada à Poesia, é atribuído pela Câmara Municipal de S. João da Madeira e traduz-se num apoio monetário à publicação do título escolhido pelo júri, até ao montante máximo de 2.000 euros.
Em “O Movimento Impróprio do Mundo”, segundo o júri do concurso, a autora “apresenta uma escrita fluida e ampletiva, tonalizada com algum humor, aparentemente simples, mas trabalhada e consistente. Abordando temáticas atuais e referências a símbolos identitários nacionais, o livro premiado contém um conjunto de poemas que desenvolvem uma reflexão poética intensa e envolvente em torno do quotidiano do próprio poeta, transportando o leitor para universos marcadamente pessoalizados”.
Sara F. Costa, escritora e poetisa, venceu este concurso literário em 2007 com a obra “Uma Devastação Inteligente” e em 2011 com “O Sono Extenso”.
O júri é atualmente constituído pela representante do Município de S. João da Madeira, Suzana Menezes, pelo representante da Âncora Editora, António Baptista Lopes, e pelo poeta José Fanha.
Licenciada em Línguas e Culturas Orientais pela Universidade do Minho, Sara F. Costa esteve dois anos em Tianjin, na China, onde expandiu os seus conhecimentos de Mandarim. Fez um mestrado em Estudos Interculturais: Português/Chinês: tradução, formação e cultura empresarial e está atualmente a fazer um doutoramento em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa.
Foi leitora nas universidades de Braga e Tianjin, professora de Português como Língua Estrangeira e professora assistente convidada da licenciatura em Tradução e Interpretação (Português/Chinês – Chinês/Português) no Instituto Politécnico de Leiria. Foi ainda Relações Públicas e é atualmente tradutora/intérprete e consultora de investimento chinês em Portugal.
Tem várias publicações académicas, onde refuta a tese da paz pelo comércio partindo do exemplo da Guerra do Ópio, analisa o intervencionismo da ONU e a importância da tradução nas redes de informação contemporâneas.


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